Senta que lá vem textão! Todo corredor gosta de uma boa história, concorda? É o que azemos aqui no blog já há alguns anos! Normalmente são histórias de vida e de superação, que servem para motivar e inspirar outras pessoas. Mas eventualmente aparecem por aqui, boas histórias de perrengues e aquelas furadas que só mesmo os corredores podem entrar. Quem nunca ouviu esses ditados ´´se piorar, melhora!“ ou ´´está bom por que está ruim!´´. Então se liga nesta história da Raquel Weiss, militar de 42 anos, atleta da Sem Limites Sports, de Canoas-RS.

´´Os cinco que viraram seis: a corrida aconteceria numa cidade a 100 quilômetros de distância, facilmente vencidos na estrada vazia de um domingo pela manhã. Acordamos cedo para tomar um café reforçado, encarar a estrada, estacionar, pegar os kits (camiseta, chip e número de peito) e aquecer. Ok, esta parte é mentira, afinal, acho que 90% dos corredores de rua detesta aquecer ou alongar. Na verdade, nós corredores só gostamos de correr mesmo.

O primeiro arrependimento do corredor surge quando ele acorda de madrugada no dia da corrida. O celular desperta, ainda está escuro, e a primeira pergunta que vem à cabeça é: POR QUÊ? Por que diabos me inscrevi para uma corrida, tão cedo, em pleno domingo, numa cidade longe da minha? E ainda paguei por isso! Onde eu estava com a cabeça? Eu juro que nunca mais faço isso. Ok, essa parte também é mentira. É claro que ele vai se inscrever novamente, quiçá no mesmo dia. E assim foi!

A corrida escolhida para aquele final de semana tinha uma peculiaridade: cada corredor ganharia um chope ao completar a prova. Nada é de graça, senhores! Só ganharia o chope quem terminasse a prova. Uma forma de divulgar as cervejarias artesanais locais e seus chopes exóticos, estimular a atividade física e amenizar o calor úmido que assolava nosso verão.

O sol nem havia nascido quando o alarme despertou e percebi que a temperatura já estava alta. A largada seria às 9h, com um calor considerável. Havia duas distâncias: 5 e 10km (em duas voltas de 5). O percurso basicamente circundava a praça principal da cidade e algumas ruas próximas. Era uma corrida sem muitos inscritos, concomitantemente havia também uma trilha marcada para um horário próximo, então a cidade estava movimentada em função dos dois eventos. A praça ainda oferecia diversos lanches na modalidade food truck, além dos estandes de cerveja artesanal. Havia brinquedos para as crianças e alguns poucos banheiros disponíveis. Isso sem dúvida era um problema. Praticamente todos os corredores preferem dar uma passada nos sanitários antes de correr, para aquele último xixi (correr com vontade de urinar é horrível), sem falar nos intestinos com hábitos matinais, aí correr fica inviável.

Logo na chegada, creio que ainda com sono, entramos na fila da corrida de trilha. Não, não era a nossa prova. Alguns minutos depois descobrimos que estávamos no local errado e achamos a fila correta. Os organizadores da nossa prova estavam desorganizados. No momento da inscrição, você coloca seus dados e o tamanho da sua camiseta, incluída no seu kit. No entanto, os organizadores desorganizados não tinham mais a numeração da minha camiseta. Saí da fila com um chip e um número de peito, mas nenhuma camiseta, com a promessa de que me enviariam durante a semana (apenas não citaram qual semana, de qual ano ou década, já que no momento em que escrevo este texto, meses após acorrida, ainda não recebi tal camiseta).

No local da largada, música alta para motivar os corredores. Muito alta! Últimos ajustes nas meias, porta-celular para marcar o percurso com o GPS, o tempo e uma música para distrair e tornar a experiência mais prazerosa. O locutor tenta concorrer com a música e fala sobre o percurso. O calor já castigava os corredores antes mesmo da largada e os olhos já ardiam com o protetor solar escorrendo.

Os organizadores desorganizados não acharam suficiente não ter o número correto de camisetas. E havia mais surpresas para os corredores. Largada animadíssima, todos empolgados e o arrependimento ao acordar já era uma lembrança distante. Muitos atletas preferem largar em uma velocidade mais rápida e depois vão mudando a estratégia. Eu sou mais adepta do devagar e sempre e, se houver fôlego, um sprint nos últimos 100 metros. Creio que havia uns 200 atletas, no máximo. O som da música da largada foi ficando para trás conforme avançávamos no percurso. Uma volta na praça e alguns staffs orientavam o percurso, sem cones ou setas marcando o asfalto indicando a direção a ser seguida.

O calor estava sufocante e tornava a respiração difícil. Decidi caminhar um pouco. O rosto estava todo vermelho pelo esforço. Alguns corredores passavam por mim e perguntavam se estava tudo bem. Sim. estava! Corri mais um quilômetro e fui ficando para trás. Lá pela metade do percurso, os corredores de elite já passavam por nós na segunda volta do percurso de 10km. Não dava nem para ouvir a respiração deles, enquanto a minha era ouvida até por quem usava fones e música alta, tamanho o esforço. Corri mais um pouco, decidi caminhar novamente. Estava meio confusa e não entendi bem se deveria seguir em frente ou voltar para a praça, não havia ninguém naquele trecho para nos orientar. O GPS do celular marcava 2 km de corrida. Respirei fundo. Não estava nem na metade ainda. Pela primeira vez pensei em não completar a prova. Poderia dar uma volta só, 2,5km já estava bom. Por um momento me decidi. Mas desisti de desistir por um motivo duvidoso: vergonha.

Os amigos que vieram conosco, e decidiram não correr, apenas aproveitar todas as modalidades de chopp oferecidas na cidade, estavam sentados à sombra, confortavelmente acomodados. Pensei que se desistisse teria que chegar lá e contar que desisti na metade da prova. Uma expressão de desagrado tomou conta do meu rosto, parecida com aquela quando chega o dia de musculação. Não, desistir não era uma opção! Já estava ali mesmo. A essa altura, o GPS marca 2,5km… Pensei que precisaria correr mais uma vez o trajeto e senti um leve desespero. Mas decidi pensar que só faltava metade do percurso. Vamos em frente!

Uma moça que compartilhou alguns metros de caminhada durante a corrida também estava com dúvidas em relação ao percurso e questionou-me se estávamos certas ou se deveríamos ter dobrado na esquina anterior, o que eu veementemente discordei, já que não havia nenhuma indicação no solo, ou cones, ou staffs. Não, estávamos no caminho correto. 

´Vamos voltar a correr?´, ela me perguntou. ´Ali naquela sombra das árvores recomeçamos`, respondi respirando fundo. Só mais 2,5km. Olhei novamente o GPS: 3km. Não era possível! Só 3km! Àquela altura eu já não me importava com o pace. Sim, o pace! Motivo de verdadeira tara de alguns corredores. Quando você compartilha com algum corredor que também tem o mesmo vício, a pergunta sempre vem: “Qual seu pace?”. Eu não fazia parte desse grupo. A corrida pra mim sempre teve dois objetivos: terapia e emagrecimento. Claro que sempre me esforcei para evoluir, mas é sabido que jamais serei uma corredora de velocidade. De distâncias mais longas talvez, mas não de distâncias curtas e rápidas. Gosto de correr olhando as paisagens, curtindo o percurso, ouvindo música, perdida em meus pensamentos. Ali eu discuto com as pessoas mentalmente e depois faço as pazes. Imagino diversos cenários, o que eu gostaria de fazer da vida, faço anotações mentais do que preciso fazer e me divirto.

Confesso que naquele dia a parte da diversão estava um pouco prejudicada. Era calor demais e o suor escorria por todos os poros do corpo. Fui ficando cada vez mais para trás, intercalando a corrida com a caminhada. A certa altura quem já havia finalizado a prova começou a passar por mim, com medalha no pescoço e frutas nas mãos. Eu olhei para trás e percebi que havia três pessoas. Ufa, eu não era a última! Tinha pavor de pensar que seria a última a chegar. Normalmente uma ambulância fecha a corrida, após o último corredor, para o caso de alguém passar mal. Atrás das três pessoas havia ainda a ambulância. Acelerei o passo, não seria a última e nem ficaria só com a ambulância.

Em uma esquina havia um staff que me perguntou se eu era a última corredora! ´Não, ainda tem umas três pessoas lá atrás!´ Eu não seria a última, não! Só mais um pouco, pensei. Olhei novamente o GPS: 4,5km. Respira! Respira fundo! Falta pouco!

A cada esquina eu virava o pescoço e procurava a praça onde seria a chegada e nada. Não via ninguém orientando o trânsito. A ambulância passa por mim, com a sirene ligada, para socorrer algum corredor que sucumbiu ao calor. Só havia um ponto de distribuição de água. Temperatura ambiente, que no caso daquele dia, poderia ser usada para preparar um chá. Falta pouco! – repito para mim mesma.

O GPS marcava 5km! Como assim? Não podia estar correto! Olho para frente, olho na esquina e não vejo nem sinal da praça! Atualizo o GPS com os dedos suados e ele segue marcando o mesmo. Já não entendo mais nada, mas sigo em frente. A chegada deveria estar logo ali em frente. Não estava! Corri mais 500 metros. Sequestraram a praça! Só poderia ser isso. A essa altura um certo pânico começa a invadir meus pensamentos, deveria ser algum tipo de corrida maluca…Mas eram só os organizadores desorganizados mesmo. Não havia sinalização adequada e quando finalmente cruzei a linha de chegada, o GPS marcava 6km.

Quando finalmente encontrei meus amigos, aqueles que estavam sentadinhos, à sombra, tomando chope, juntamente com quem já havia concluído a prova, só consegui mirar a cadeira vazia e me atirar nela. Alguns se ofereceram para me levar ao hospital, chamar o SAMU ou um copo de água. Eu só queria respirar. Provavelmente demoraria umas 2h até meu rosto voltar à coloração normal, depois de tanto esforço. 

A promessa que fizemos após a prova era de nunca mais nos inscrevermos em corridas promovidas pela organização desorganizada. Os chopes artesanais estavam fazendo sucesso com seus sabores exóticos e a endorfina começava a fazer efeito, porque apesar dos 5km terem virado 6km, a falta de ar e o rosto vermelho encarnado, a sensação de prazer por ter completado uma corrida difícil, num calor extremo e com percurso surpresa, era maravilhosa! Estava me sentindo uma super-heroína, com direito a sprint final de 50 metros. Recuperei um pouco o fôlego e perguntei aos meus amigos: ´Ano que vem a gente vem de novo, né?` Todos me olharam espantados e caíram na risada. ´Sim, ano que vem a gente vem de novo!´

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Jornalista, pai e corredor. Vê a corrida como uma ferramente para fazer a vida fazer sentido. Não se preocupa em ser rápido, nem com a chegada. O que importa é o caminho...

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